domingo, 3 de novembro de 2013

REFLEXÕES POLÍTICAS - O INIMIGO SOMOS NÓS MESMOS




  O modelo de civilização outrora inventado na Europa demonstrou sem dúvida ser de um dinamismo e de uma eficácia sem concorrência. Mas não é capaz de modelar o futuro. «A melhoria sensível do nível de vida» que «a alta da produção industrial» haveria proporcionar a todos nos «países subdesenvolvidos» tinha tinha sido anunciada aos pobres do mundo pelo presidente Harry Truman, em 1949. Porém, de facto não teve lugar.
  É justamente agora - quando milhões e milhões de pessoas unidas pelo mundo das imagens procuram, de Bogotá a  Jacarta, atingir o modelo ocidental - que os vendedores dessa promessa de desenvolvimento rescindem o contrato. Mesmo nos seus próprios países, nos Estados Unidos e na Europa, são incapazes de manter a sua promessa e não conseguem travar uma diferenciação social que não cessa de aumentar. Nestas condições, quem se preocupa ainda com a conciliação do crescimento e do ambiente ou com a repartição das riquezas de forma equitativa no Terceiro Mundo? O dogma autoritário do crescimento surge cada vez mais como a arma de uma época já passada: fazia parte do arsenal da guerra fria. Segundo esta lógica, hoje parece só servir como peça de museu.
  Salve-se quem puder! - eis a nova palavra de ordem. Mas... quem poderá? É que a vitória do capitalismo não assinalou apenas esse «fim da história» que o filósofo norte-americano Francis Fukuyama proclamava em 1989 - pôs também fim a esse projecto a que, com tanta temeridade, se tinha dado o nome de «modernidade». Estamos no começo de uma mudança de época de dimensões mundiais: com toda a evidência, já não são a expansão e a prosperidade, mas o declínio, a destruição ecológica e a degenerescência cultural que a caracterizam a vida quotidiana da maior parte da humanidade.
  Elites mundiais apontam para a sociedade dos dois décimos, em particular nus Estados até agora prósperos. À escala mundial, há já muito tempo que o desequilíbrio se instaurou.
  Os dados são conhecidos, mas as forças da globalização, uma vez libertadas, fá-los-ão surgir sob uma nova luz: Um quinto dos Estados do planeta (os mais ricos, evidentemente) produzem cerca de 85% do produto mundial bruto, os seus cidadãos efectuam 84% das transacções mundiais e possuem 86% de toda a poupança interna. Desde 1970, a diferença entre o quinto país mais rico e o mais pobre mais do que duplicou - outro testemunho do fracasso de uma politica de ajuda ao desenvolvimento que prometia equidade. E este fracasso está bem expresso nos números e nas desigualdades que existem actualmente.
  O modelo global de consumo de recursos não foi alterado depois da espectacular conferência do Rio de Janeiro, em 1992, uma manifestação organizada pela ONU e consagrada ao ambiente e ao desenvolvimento. Os membros afortunados do clube dos dois décimos guardaram para si o privilégio de 85% da utilização mundial da madeira, 75% do tratamento dos metais e 70% da energia. As consequências  são tão banais quanto brutais: os habitantes do Globo jamais poderão conhecer em conjunto tal nível de prosperidade, com as devastadoras consequências que este tem sobre a natureza. É a terra a impor os seus limites à humanidade. 
  A difusão mundial das centrais eléctricas e dos motores de combustão já perturbou profundamente o equilíbrio energético do nosso ecossistema. As declarações de intenções da cimeira do Rio soam hoje como cançonetas de uma época perdida na noite dos tempos. Nos subúrbios da mais bela metrópole do planeta, a comunidade mundial pronunciou-se nos seus discursos a favor de  um «desenvolvimento durável», de uma evolução económica que não deixasse como herança às gerações futuras um agravamento da situação do ambiente e dos recursos naturais. Daqui em diante, era necessário, pelo menos nos estados industrializados, reduzir as emissões de dióxido de carbono para os níveis de 1990.
  Mas estas promessas feitas no papel não valem mais do que a tinta com que foram escritas. O mais provável é que o consumo mundial de energia duplique até ao ano 2020. Os gases responsáveis pelo efeito de estufa aumentarão entre 45 e 90%.
  Já não é possível parar a transformação do clima, apenas atenuá-la, e ela provocará um número monstruoso de vítimas. Para todos nós, o aquecimento global e as suas consequências, como por exemplo as tempestades e as inundações, são já uma realidade.
  Não há dúvidas de que já não se poderá impedir uma subida sensível do nível dos oceanos. A era das cidades, ainda à pouco iniciada, poderá assim conhecer um fim abrupto mesmo antes de 2050. Em dez aglomerações com mais de meio milhão de habitantes, quatro encontram-se nas proximidades do litoral - e três quintos das megametrópoles estão incluídas nesta categoria. A existência de Bombaim, Banguecoque, Istambul, e Nova Iorque está realmente ameaçada, e serão muitos raros os monstros urbanos que, para não molharem os pés, poderão oferecer a si mesmos onerosos diques, como acontece na Holanda.
  Também a China deverá temer as tempestades neste século. Xangai, Hong Kong e dezenas de outras cidades com vários milhões de habitantes estão perto do mar. Mas os herdeiros de Mao pensam acima de tudo apenas neste século, tirando as devidas lições e estão a copiar, com licença ou sem ela, as conquistas do Ocidente. A grande opção já está feita; a orientação fundamental foi decidida: este povo com os seus mil milhões de almas, está a preparar-se para a longa marcha para a sociedade automóvel. Um único cálculo pragmático poderá estar na origem desta decisão: mais vale um aquecimento do clima mundial do que um sobreaquecimento do ambiente no país. Um veículo próprio é tão tranquilizante como uma dose de ópio.
  «Nos dias de hoje, andar de bicicleta na China é mal visto, é a própria expressão do subdesenvolvimento».Actualmente deslocam-se nas estradas chinesas apenas apenas um décimo do parque automóvel Alemão. Mas este cenário está a mudar. Com cinquenta milhões de carros novos todos os anos, o conjunto do mercado asiático será brevemente tão grande quanto o da Europa e da América do Norte reunidos. A América Latina e os antigos Estados do Bloco de Leste têm igualmente taxas de crescimento espantosas; no Brasil, os registos de novos veículos quase triplicaram nos anos noventa e seguintes. O fascínio exercido pela ideia de possuir veículo próprio, que está a desvanecer-se em alguns países, encontra-se ainda intacta nesses novos mercados emergentes. O automóvel, longe de ser um simples meio de transporte é antes de mais um símbolo de ascensão Social uma prova de riqueza e do poder. O sinal de uma pretensa liberdade individual. 
  No ano de 2020, mil milhões de veículos, duas vezes mais do que hoje, levarão sem dúvida ao enfarte mundial do tráfego rodoviário. E depois? Todos os esforços envidados noutros países ou noutras regiões para pelo menos , se reduzir o perigo do aquecimento do clima economizando energia e limitando-se o tráfego automóvel, foram assim reduzidos a quase nada.
  A industrialização dos países emergentes desenrola-se hoje num clima de angustiante ignorância ecológica. As cidades da China vomitam uma gigantesca nuvem tóxica que se estende por mais de dois mil quilómetros por cima do oceano Pacífico.
  Há cerca de um ano li um artigo do arquitecto britânico John Seargant no qual ele relata da seguinte maneira uma viagem que fez ao Extremo Oriente, resumindo assim as suas impressões: « vi o futuro de uma grande parte da zona do Pacífico e estou mergulhado num pavor mortal. Um quarto da população do Globo está a mudar de nível d vida, destruindo assim uma parte importante do planeta.»
  A China está em muito boa companhia, como todos sabemos. E nós também fazemos parte dos cúmplices. A maior parte dos habitantes dos países até agora qualificados de prósperos julga poder viver sem dificuldades com o aquecimento global. Mas também o problema ecológico favorece essa sociedade dos dois décimos que está em vias de se estabelecer. De futuro, serão poucos os indivíduos que ainda poderão oferecer-se produtos naturais caros e raros. Mas os que deles poderão dispor tirarão maior proveitos disso.
  É que se a formação de uma larga frente política desejosa de combater o aquecimento global do planeta demora tanto tempo, é porque vários milhões de pessoas consideram ainda que poderão beneficiar da alteração climática. Dito isto, estaríamos errados se pensássemos que todos os esforços são vãos e que o Apocalipse é inelutável. Os que chegam a tais conclusões não fazem mais do que incitar os outros a esquivarem-se aos problemas e a justificarem a sua própria inactividade. De facto, tornou-se muito confortável esperar pelo fim do mundo.
  Mas esse desaparecimento redentor que resolveria todos os conflitos não terá lugar. A humanidade sobreviverá, será obrigada a sobreviver, e por muito tempo ainda. A única questão reside em saber como - e qual a percentagem da humanidade que estará mais perto da prosperidade ou da miséria absoluta, inclusivamente no seio do que até agora se designava por mundo industrializado . Não há quaisquer dúvidas de que o «destino ecológico da humanidade será jogado na Ásia», sublinha o director da Greenpeace Internacional. Mas os primeiros responsáveis pela renovação ecológica são os mesmos que criam o paraíso das mercadorias e se agarram às suas imagens e ídolos.
  O abandono do modelo tradicional de desenvolvimento económico - quaisquer que sejas os sacrifícios que implique - não será obrigatoriamente «uma sinistra marcha marcha para a miséria»: pelo contrário, poderá levar a «novas formas de bem-estar, afirma Ernst Ulrich, presidente do Instituto de Wuppertal. O director deste laboratório do futuro, de cuja seriedade ninguém duvida, apresentou pormenorizadamente  a sua ideia já em 1995.
  Enquanto as regiões centrais da Europa anunciam a motorização completa, no momento em  que todos os lares estão equipados com televisores e todas outras tecnologias e em particular as de informação, alguns indivíduos, sobretudo os citadinos, rompem abertamente com os ícones  da modernidade. Mas também aqui a sociedade se polariza: quando se passam horas à procura de um lugar para arrumar o carro, já pouco resta do prazer de conduzir. Assim se dissipa o ideal de uma sociedade automóvel igualitária. Mesmo perante o grande engarrafamento, os homens não são iguais, longe disso. Outrora, era a posse de um televisor e de um automóvel que conferia um estatuto; hoje o novo luxo é não ter necessidade de veículo e não depender da televisão. Quando se leva uma vida excitante, não há dificuldade em se renunciar aobrilho virtual da televisão - e deixa de se ouvir falar em tittyainmment.
  Estes pequenos refúgios requintados não ocultam a mutação social iminente há tanto tempo descritas por certos visionários, desde Dennis Meadows até ao vice- presidente norte-americano Al Gore. No início de Verão de 1989, os problemas do ambiente e a catástrofe climática estavam, pela primeira vez, na ordem do dia na cimeira económica do G7, que reúne as sete nações mais ricas do mundo. Julgou-se que essa reunião anunciava uma mudança na forma de pensar. «Os anos 90 de seguintes serão décadas críticas» Os combates decisivos serão nos dias de hoje ganhos ou perdidos. É uma ameaça actual que não tem rosto. O inimigo da degradação ambiental somos nós mesmos!


  Jorge Neves

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