segunda-feira, 4 de novembro de 2013

REFLEXÕES POLÍTICAS - CRIMINALIDADE SEM FRONTEIRAS







  Os cortes forçados nos orçamentos relegam os políticos para uma posição de meros administradores da penúria. Já só lhes resta então reportarem-se aos poderes superiores do progresso económico para rejeitarem as suas responsabilidades pela miséria. Tal atitude mina a base do Estado democrático. Mas os problemas financeiros crónicos são somente mais um dos sintomas do declínio político, entre tantos outros. Depois da soberania monetária e fiscal, está a vacilar mais um pilar do Estado-nação: o monopólio da força armada. É que, tal como os bancos e os grandes grupos, também as multinacionais do crime beneficiam com o desaparecimento desses vínculos legais que refreavam a economia. Na totalidade dos países europeus, as autoridades políticas e judiciais evocam o rapidíssimo crescimento da criminalidade organizada - «O que é bom para o comércio livre também o é para os criminosos», constata com grande lucidez um funcionário da Interpol.
  Já nos finais dos anos 80 as sete maiores nações económicas reuniram um grupo de peritos. Segundo esta comissão, já em 1990 o volume de negócios do mercado da heroína tinha duplicado relativamente à duas décadas atrás, enquanto o comércio da cocaína se viu multiplicado por cinquenta. E quando se sabe vender drogas, é possível instalar-se em qualquer mercado ilegal. Os cigarros que não pagam impostos, as armas, os veículos roubados e a introdução de imigrantes clandestinos estão hoje a ascender ao lugar que o tráfico de droga tem ocupado no pódio das fontes de rendimento da economia clandestina.
  Seja como for neste mundo do comércio ilegal, e tendo em conta o aumento exponencial dos volumes comerciais, a polícia não consegue controlar senão uma fracção do contrabando. Mas estas apreensões não prejudicam muito o comércio clandestino: os investigadores apenas conseguem prender os distribuidores e os transportadores. Os organizadores, respeitáveis homens de negócios, são absolutamente intocáveis. Conhecem-se os nomes das pessoas, mas não as podem ou não querem apanhar. De facto não são acessíveis: nas suas fronteiras, o mais tardar, a colaboração policial internacional fica suspensa.
  Há outra realidade que provoca ainda mais dores de cabeça aos investigadores: tornou-se impossível deita a mão à fortuna dos grupos criminosos. Qualquer que seja a eficácia do trabalho da polícia e da justiça, os lucros acumulados permanecem intocáveis no espaço sem direito do mercado financeiro global. O segredo bancário das zonas de evasão do capital, que a comunidade financeira internacional defende com unhas e dentes, não protege apenas os que se furtam fraudulentamente ao fisco. Não é por acaso que os principais paraísos fiscais se desenvolveram ao longo dos grandes itinerários do tráfico de droga. «O Panamá e as Baamas são conhecidos como centros de branqueamento do dinheiro proveniente do tráfico da cocaína. Hong Kong desempenha o mesmo papel para os lucros realizados graças ao comércio da heroína proveniente do Sudeste Asiático, enquanto que Gilbraltar e Chipre servem de porto de abrigo ao capital dos traficantes de droga do Próximo Oriente e da Turquia», afirma a economista britânica Suzan Strange, resumindo assim a a função das praças offshore na economia clandestina. Dito isto, nenhuma lei contra o branqueamento do dinheiro, por mais rigorosa que seja, pode travar o trabalho de sapa efectuado pelos investidores criminosos contra os os sectores legais. «Hoje em dia, quando se quer lavar dinheiro adquirido de forma criminosa , é possível fazê-lo sem dificuldades quase no mundo inteiro. As consequências são aterradoras . Actualmente, os peritos consideram que a criminalidade organizada é o sector económico que se desenvolve mais rapidamente, com lucros anuais na ordem de biliões de Euros.
  Quanto mais capital os carteis do crime acumulam mais possibilidade têm de corromper e até assumir integralmente o controlo de empresas legais e de certas instâncias do Estado. O fenómeno é tanto mais inquietante quanto o Estado em certos países está fracamente desenvolvido. Em vários países a actividade comercial ilegal e a actividade legal intersectam-se constantemente. Ninguém consegue já dizer quais os elementos do aparelho de Estado  que ainda defendem o direito ou se contentam, a pedido dos criminosos, em conduzir uma guerra contra os seus concorrentes. Veja-se o exemplo da Itália, que apesar das operações  espectaculares , não consegue ganhar a sua batalha contra a máfia. O capital dos antigos patrões da máfia passou, sem fricçõe, para as mãos dos herdeiros desconhecidos que tiveram de modernizar as suas organizações.
  Partindo do seu país de origem, apoiadas pelos seus bancos , as redes criminosas vão- se pouco a pouco infiltrando nos Estados ricos que ainda parecem funcionar de forma correcta.
  A fronteira entre legalidade e clandestinidade na vida dos negócios está cada vez mais esbatida. Desconhecendo quem dirige verdadeiramente as empresas, até grupos e bancos sérios podem ver-se envolvidos em negócios obscuros. Quando uma empresa concorrente controlada por criminosos utiliza métodos ilegais, os colaboradores das empresas regulamentares sente-se tentados a recorrer a  estas técnicas por sua própria conta e risco. As quantias utilizadas para a corrupção não têm limites e também elas fazem com que se esqueçam muitos escrúpulos.
  Em todo o mundo, o Estado e a política encontram-se  assim cada vea mais na defensiva. Mesmo as leis  anti-cartéis, que outrora  foram as defesas da economia de mercado contra os conluios impostos pelos empresários à custa dos consumidores ou dos contribuintes, perdem parte do seu efeito.
  Também a política do ambiente foi posta na gaveta. Na competição a que se entregam os Estados  para recuperarem os postos de trabalho proporcionados pelos grandes grupos, a maior parte dos governos abandonou ou adiou todos os projectos de reforma ecológica.
  A catalogação destes fracassos do Estado face à anarquia do mercado poderia ser prolongada quase ao infinito. Pouco a pouco, no mundo inteiro, os governos vão perdendo a faculdade de intervirem na evolução da sua própria nação. Em todos os planos se vê surgir o erro sistemático da integração mundial: enquanto o fluxo de mercadorias e do capital ficou disponível do mundo inteiro, a regulamentação e a supervisão permaneceram uma questão nacional. A economia está a devorar a política. 
  Porém, contrariamente a uma ideia largamente difundida, a crescente impotência do Estado de forma alguma leva a um emagrecimento geral do aparelho de Estado e ainda menos, ao contrário do que supunha o visionário japonês e antigo director da McKinsey na Ásia, Kenichi Ohmae, ao «fim do Estado-nação». É que o Estado e o seu governo continuam a ser a única instância junto da qual os cidadãos e os eleitores podem reclamar justiça, exigir contas e reivindicar mudanças. A ideia de que a união dos grupos mundiais poderia por si só assumir as funções até agora reservadas ao Estado, como anunciava numa reportagem de manchete a revista norte-americana  Newsweek, é uma ilusão. Nenhum director de um grupo, por mais poderoso que seja, consideraria sequer a hipótese de assumir a responsabilidade por evoluções que se processam fora da sua empresa. Não é para isso que lhes pagam. Os responsáveis dos grandes grupos são os primeiros a exigirem a intervenção do Estado em caso de incêndio. Daí que em muitos locais não se assista ao desmantelamento geral da administração burocrática, mas sim ao seu fortalecimento
  Estará o mundo a dirigir-se para uma colaboração global que terá como objectivo salvar a estabilidade social e ecológica? Serão apenas necessários mais uns quantos empurrões para que a governação global se torne uma realidade? Se só olhássemos para o número de conferências científicas e das publicações sobre este tema, crer-nos-íamos já a dois passos da entrada numa nova era. Mas os resultados obtidos continuam a ser decepcionantes.


  Jorge Neves

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