sexta-feira, 18 de outubro de 2013

REFLEXÕES POLÍTICAS - OS MILHÕES DE VÍTIMAS DO MERCADO MUNDIAL





  Mudar a localização de stocks, simplificar, extinguir,despedir - a economia de alto rendimento e de alta tecnologia devora a prosperidade e demite os seus consumidores.
  Anuncia-se um terramoto económico e social, cujas dimensões são ainda desconhecidas. Quer se trate da construção de automóveis ou da de computadores, do ramo químico ou electrónico, das telecomunicações ou dos serviços postais, do comércio retalhista ou da economia financeira, onde quer que os produtos ou serviços sejam transaccionados livremente através de todas as fronteiras, todos os que estão empregados serão arrastados pelo turbilhão da desvalorização e racionalização, aparentemente imparável. 
  Só na indústria alemã anualmente perdem-se milhares de postos de trabalho. E a situação da Alemanha é, em termos internacionais comparativamente boa. Nos outros países da OCDE, da organização das nações industrializadas e ricas e dos países vizinhos pobres, o número dos empregados bem remunerados diminuiu com maior rapidez. Desde a década de noventa milhões de pessoas procuram trabalho em vão nos estados da OCDE. Dos EUA à Austrália, da Grã-Bretanha ao Japão, a prosperidade de massas das nações líderes da economia mundial desaparece velozmente. 
  Até a actividade cuja função é descrever a decadência e para qual as más notícias significam sempre boas notícias começa a ressentir-se da mudança dos tempos: Jornalistas e documentalistas, investigadores e chefes de redacção serão sacrificados ao universo do tittytainment que se avizinha. Cada vez menos pessoas dos media produzem cada vez mais histórias, cada vez mais depressa; jornalistas da nova geração jamais poderão sonhar com uma colocação sólida e com um chorudo orçamento de despesas até aqui habituais nos «navios-almirantes» da imprensa e nas estações de televisão estatais e institucionais. O que antigamente era padrão natural está actualmente reservado e mesmo assim enfraquecido, aos trabalhadores de longa data e a algumas estrelas. Os novos profissionais têm de se contentar, porém, com contratos colectivos inseguros e miseráveis honorários calculados à linha. Até mesmo editores de livros e nomes conceituados da televisão e do cinema recorrem ao trabalho barato. Editoras sólidas hesitam em relação a novas colocações, pois o futuro do ramo é incerto devido ao aumento das matérias primas e a diminuição do interesse por parte dos leitores.
  Violentas rupturas relacionadas com o emprego ocorrem em grande escala, igualmente em ramos que, até há pouco, prometiam aos seus trabalhadores colocações vitalícias, independentemente dos altos e baixos da conjuntura mundial. A aparatosa diminuição do emprego ameaça não só os bancos e as companhias de seguros, como também as empresas de telecomunicações, as companhias de aviação e a função pública.
  A União Europeia com a Alemanha à cabeça oferecem aos lobos esfaimados da competição global uma suculenta presa.
  Não se vislumbra o fim da crise do emprego. Muito pelo contrário: após avaliação dos levantamentos por parte de várias instituições mundiais, as mesmas chegaram à conclusão que nos próximos anos mais de quinze milhões de trabalhadores irão temer pelos seus empregos a tempo inteiro.Estes valores duplicaram a cada década.
  Actualmente a zona Euro tem uma percentagem de desempregados de 12%, Portugal 18% e em Espanha são cinco milhões de desempregados que corresponde a 23%.
  Com efeito os ordenados no novo mundo do trabalho, que obrigará milhões de trabalhadores de ocasião a saltar de um trabalho temporário para outro, serão significativamente inferiores aos do sistema de tarifas salariais em vigor até aos dias de hoje. A sociedade dos dois décimos está cada vez mais perto.
  As consequências da mudança são sentidas por cada um, apesar do próprio emprego parecer ainda seguro. O medo do futuro e a insegurança grassam, a textura social degrada-se. Contudo, a maioria dos responsáveis recusa-se a aceitar a responsabilidade. Governos e direcções de grupos industriais e financeiros sentem-se impotentes e reclamam a sua inocência. Explicam aos respectivos eleitores e trabalhadores que a até agora inimaginável redução maciça de colocações ou seja da criação de novos empregos, seria consequência de uma inevitável modificação de estruturas. Já na década de noventa e seguinte o «neoliberal» alto comissário Martin Bangenam da União Europeia, opinava que com a manutenção de salários elevados, a produção em massa na Europa Ocidental não terá qualquer futuro. Juntamente com a China e com o Vietename há concorrentes à espera cujos custos salariais são os mais baixos possível. O jornal de gestores Wall Street Jounal constata: «A concorrência numa economia de trabalho global brutal cria um mercado de trabalho global. Já não há empregos seguros.»
  Os beneficiários da economia sem fronteiras gostam de explicar a crise como se fosse uma espécie de processo natural. «A competição na aldeia global é como uma grande cheia: ninguém lhe consegue escapar», profetizou já em 1993 o então director da Daimler-Benz. Henrich Von Pierer timoneiro do grupo Siemens, mais tarde repete a mesma mensagem com as mesmas palavras.
  O vento da competição transformou-se numa tempestade e o verdadeiro furacão está para chegar.
A integração da economia para além de todas as fronteiras não é, de forma alguma, determinada por uma lei natural ou por um progresso técnico linear que irrompe e ao qual não há qualquer alternativa. Ela é sim o resultado duma política governamental conduzida conscientemente desde sobretudo há duas décadas pelas nações ocidentais industrializadas, à qual se dá continuidade até aos dias de hoje.
  Inevitavelmente caminhamos para a sociedade dos dois décimos, ou seja 20% de pessoas incluídas par 80% de pessoas excluídas.

  ISTO SÓ PODE ACABAR MAL!


  Jorge Neves

  


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

REFLEXÕES POLÍTICAS - ESTALINE QUERIA A OMNIPOTÊNCIA E O RATO MICKEY CONSEGUIU A OMNIPRESENÇA








   Mas porque terá sido justamente o ideal de vida Americano o que prevaleceu?
  Porque terá Disney passado por cima de todo o resto?
  A dimensão nacional do mercado norte-americano, a posição de poderio geopolítico  dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, o seu poder nas batalhas de propaganda da guerra fria terão certamente desempenhado um papel central, embora não o único papel decisivo. Por outras palavras: Estaline queria a omnipotência e o Rato Mickey conseguiu a omnipresença.
  O magnata dos média Michael Eisner, presidente do conselho de administração e presidente da Walt Disney Company, tem a sua própria interpretação: «O entertainment norte-americano veicula uma grande quantidade de possibilidades individuais, de escolhas individuais e de expressão individual. É isso que as pessoas de todo o mundo querem.» E acrescenta este representante de Hollywood, despreocupadamente: «A indústria norte-americana do entretenimento, resultado de uma liberdade criativa sem limites, produz uma originalidade que não se encontra em mais nenhum local do mundo. Uma personalidade que fortemente ataca este sistema chama-se Benjamim R. Barber e dirige o Walt Whitman Center University, em New Jersey. Foi ele quem inventou a fórmula, hoje clássica, « Jihad contra McWorld». Para ele, a tese da diversidade desenvolvida por Eisner é uma «mentira pura e simples» Esse mito mistura dois pontos decisivos: o tipo de escolha e a pretensa independência dos desejos. Em numerosas cidades norte-americanas e europeias pode escolher-se, por exemplo, entre dezenas de modelos de automóveis, mas não se pode optar entre vários meios de transportes públicos. E como é possível afirmar com seriedade que o mercado dá às pessoas unicamente o que elas desejam, quando se concede à indústria publicitária um orçamento de mais de um bilião de dólares? Não será a cadeia de televisão MTV apenas um canal publicitário que assegura ao longo de vinte e quatro horas por dia a promoção da indústria musical?
 Para Barber, o fulgurante sucesso da «colonização da cultura mundial pela Disney», baseia-se num fenómeno tão antigo quanto a civilização: a competição entre o pesado e o leve, o lento e o rápido, o complexo e o simples. Os primeiros destes pares de termos estão sempre associados a prestações culturais admiradas, correspondendo os segundos «à nossa indiferença, ao nosso desleixo, à nossa preguiça. A Disney, o McDonald's e a MTV, como exemplo, seduzem-nos a todos pelo lado fácil, rápido e simples».
  Devam-se as causas do triunfo de Hollywood à avaliação de Eisner ou à de Barber, as consequências concretas desse êxito são omnipresentes. A cada esquina, encontramo-nos diante de Cindy Crawford ou de Pocahontas, como em outras áreas esbarramos numa garrafa de Coca Cola ou num logótipo da Nokia, da mesma forma que na outrora União Soviética havia uma estátua de Lenine de cem em cem metros.

  O grande desejo do grito uniforme

  Mas quanto mais se internacionalizou o mercado das imagens, mais limitado ele se tornou. Em média, a indústria cinematográfica norte-americana consagra a cada file de ficção 125 milhões de dólares, quantia que os produtores europeus ou indianos são absolutamente incapazes de reunir. Seja no domínio da técnica seja no domínio dos cenários, estes dispendiosos filmes fixam constantemente novas normas, normas essas que os seus concorrentes raramente satisfazem. Nestas condições, a atracção exercida por Hollywood e por Nova Iorque cresce constantemente.
  A diversidade que nos prometem para o futuro, a de por exemplo os quinhentos canais de televisão a que todos os lares poderão ter acesso, não é igualmente mais do que uma aparência. Um pequeno número de líderes do mercado transformarão e reciclarão a sua mercadoria num grande número de locais de retransmissão, em função das expectativas do seu grupo-alvo. Paralelamente, hoje em dia e de futuro, a caça às audiências favorece e favorecerá as fusões entre as empresas dos mídia e do entretenimento. Os direitos de transmissão, das manifestações desportivas importantes, por exemplo, já não podem ser financiadas senão por enormes receitas publicitárias; ora, estas não podem ser obtidas a não ser por intermédio de grandes cadeias de radiodifusão ou de agências internacionais de venda de espaço publicitário. E os únicos que têm interesse em emitir spots publicitários e em particular as emissões são os fabricantes presentes em toda a zona de transmissão, ou seja, essencialmente, grupos multinacionais.
  Finalmente, as agências publicitárias recorrem a cenários inspirados numa pátria onírica isto é numa pátria de sonhos comum a todos os seus clientes. O grande público europeu já está tão seduzido por Nova Iorque e pelo Oeste selvagem que na noite em que a cadeia de televisão RTL  emitiu a final de futebol da Liga dos Campeões, já no longínquo Maio de 1996, mais de metade dos seus spots publicitários remetiam para clichés provenientes desse mundo longínquo e aparentemente familiar. Hoje em dia, para acompanhar e cerveja Beck's, o sol vermelho já não mergulha no mar em Capri, mas atrás da Golden Gate; os pneus Continental já não chiam sobre o asfalto alemão de Nuburgring, mas nas ravinas sobre as quais se debruçam os arranha-céus de Manhattan etc, etc, etc...
  Também na Europa, o desporto, mercadoria cultural, está cada vez mais a transformar-se numa mercadoria para uma sociedade do lazer obnubilada, ou seja deslumbrada pelo desing e que aplaude entusiasticamente as embalagens enganadoras.
 Na Fifa pede-se que os intervalos dos jogos de futebol sejam mais longos, a fim de dar mais espaço à publicidade, tal como no futebol norte-americano. O Bayern de Munique equipa do Sul da Alemanha, vende agora mais camisolas em Hamburgo, no Norte do país do que os dois clubes de Hamburgo que participam no campeonato nacional. Como também são cada vez mais difíceis as controvérsias surgirem das comparações tradicionais entre as cidades,  «há que criá-las artificialmente, opondo os jogadores aos jogadores, os jogadores ao treinador, e o treinador ao presidente». 
  Como uma charrua a dar a volta ao mundo, a procura destes produtos aos quais se assegura uma publicidade global e desejados por milhões e milhões de indivíduos veio revolucionar o comércio tradicional de todas as cidades do mundo.
  Hoje em dia, conseguiu-se «transformar a sede em necessidade de Coca-Cola», para utilizar a maliciosa expressão outrora utilizada pelo pensador Ivan Illich. As metrópoles são hoje dominadas pelos mesmos logótipos por todos conhecidos, A reflexão e as mercadorias acumulam-se nos filmes propostos pelas salas de cinema e nos gostos musicais em vigor: todos se uniformizam, a um ritmo frequentemente destrutivo para os antigos produtores nacionais. De Lisboa a Praga, passando pelo Marais, velho bairro parisiense, os cenários são cada vez mais semelhantes: lojas uniformes invadem os centros das cidades outrora específicos e geradores de identidade. Cadeias internacionais de lojas apoderam-se dos melhores locais: restaurantes Fast- Food estandardizados  atraentes lojas de pronto-a-vestir ou cosméticos inodoros abrem aí por todo o lado..etc...etc...etc.
  Numa palavra: todo está em toda a parte.


  Jorge Neves

terça-feira, 8 de outubro de 2013

REFLEXÕES POLÍTICAS - A GLOBALIZAÇÃO DA INJUSTIÇA. OS PERIGOSOS POLÍCIAS DO MUNDO







  As propostas e as ideias para que se caminhe para uma melhor distribuição da riqueza, todas elas assentam numa condição comum que ainda hoje não é uma realidade: a existência de governos capazes de agir e de enfrentar, com tais reformas, a nova Internacional do dinheiro sem por isso sofrerem a sanção da fuga de capitais. A única nação que pode hoje provocar uma mudança de rumo, contando apenas com as suas próprias forças, é a superpotência económica e militar dos Estados Unidos. Mas, no momento actual, as hipóteses de se ver os norte-americanos lançar uma iniciativa para refrear as forças do mercado em proveito de todos os povos são praticamente nulas. Pelo contrário, o mais provável é que os futuros governos dos Estados Unidos apontem para soluções (aparentes) de tipo proteccionista e procurem obter para o seu país vantagens comerciais à custa das outras nações.
  Aliás, tal não estaria em contradição com a tradição norte-americana. Aquela América cheia de abnegação, que ajuda o resto do mundo a resolver os seus problemas, nunca existiu. Os governos norte-americanos, qualquer que seja a sua cor, conformam-se quase exclusivamente, e desde sempre, ao que consideram ser o seu interesse nacional. Enquanto foi necessário combater o «Império de Mal», a Leste, era preciso uma Europa Ocidental estável e próspera, para se opor ao comunismo o suave rosto do capitalismo. Neste momento, porém,  Washington já não necessita da Europa para desempenhar esse papel. Se as empresas instaladas nos Estados Unidos puderem retirar vantagens de uma política que afaste os produtos e as prestações de serviços estrangeiros do mercado norte-americano ou de outros mercados importantes, certamente não hesitarão em dar o seu apoio político às forças do mercado. Recordemos durante a administração Clinton já nos deu um ante gosto dos futuros conflitos transatlânticos  durante a crise do dólar de 1995. Recorde-se também que já em Agosto de 1996, segui-se-lhe outro exemplo. A pretexto da luta contra o terrorismo, o presidente do Estados Unidos assinou uma lei que pretende banir do mercado norte-americano todas as empresas europeias e japonesas que têm negócios com o Líbano e o Irão, nomeadamente nos sectores petrolífero e da construção. Os Estados membros da União Europeia viram-se obrigados a agitar a ameaça de represálias. É exactamente porque o Estado social norte-americano está arruinado e já não consegue proteger os seus cidadãos contra as crises provocadas pelo mercado mundial que a grande reacção contra a mundialização há-de certamente vir do país que propagou no mundo inteiro o dogma da submissão total ao mercado. O gigante norte-americano não é somente imprevisível no seu papel de polícia do mundo. Deixou igualmente de manter o seu papel de guardião do comércio livre mundial.


  JORGE NEVES

domingo, 6 de outubro de 2013

REFLEXÕES POLÍTICAS - A GLOBALIZAÇÃO DA INJUSTIÇA






  Só podemos combater eficazmente a tecnocracia
  internacional se a desafiarmos no seu terreno de eleição,
  o das ciências económica, e se opusermos ao pensamento
  mutilado a que ela recorre um saber que respeite
  mais as pessoas e as realidades que estas enfrentam.

                                                             PIERRE BOURDIEU 


  Qual a dose de mercado que a democracia pode suportar? Ainda há poucos anos, esta questão parecia ociosa. Contudo, era nas sociedades democráticas do Ocidente que a economia de mercado tinha permitido que um número cada vez maior de cidadãos vivesse ao abrigo das preocupações materiais. O mercado mais a democracia: era esta a fórmula dos vencedores, a fórmula que, no final de contas, tinha posto de joelhos as ditaduras de partido único do bloco de leste.
  Só que o fim dos regimes comunistas não soou como o fim da história mas, pelo contrário, como a fantástica aceleração das mutações sociais. Deste então cerca de mil milhões de pessoas entraram para a esfera económica do mercado mundial, tendo sido nesse momento que a integração das economias nacionais começou verdadeiramente. A amarga experiência já sentida pelos fundadores dos Estados prósperos do pós-guerra não levanta hoje a mínima dúvida: a economia de mercado e a democracia nada têm de dois irmãos de sangue inseparáveis que alimentam em conjunto a prosperidade de todos. Pelo contrário, as duas figuras ideológicas centrais das velhas nações industrializadas ocidentais vivem numa contradição permanente.
  Uma sociedade de constituição democrática só é estável quando os seus eleitores sentem e sabem que o que conta são os direitos e os interesses de todos, e não apenas os dos indivíduos que gozam de supremacia económica. Os políticos democráticos sabem pois exercer pressão para obterem uma compensação social e restringirem a liberdade do indivíduo em proveito do bem comum. Simultaneamente, porém, a economia de mercado, para poder prosperar, tem absoluta necessidade da economia empresarial. Só a perspectiva do lucro individual liberta as forças que, através das inovações e dos investimentos, criam uma nova riqueza. Portanto, desde sempre, empresários e accionistas procuram impor o direito do mais forte (ou seja, do capital e do seu poder).A grande realização da política ocidental do pós-guerra foi a tentativa de encontrar entre estes dois pólos o equilíbrio adequado, tentativa essa de inegável êxito. É exactamente isto que é designado pelos termos de «economia social de mercado», essa ideia que assegurou durante cinco décadas consecutivas a estabilidade e a paz aos alemães ocidentais  e a todo o resto da Europa.
  Mas este equilíbrio está a ponto de se perder. Tendo o Estado cada vez menos possibilidades de intervir no mercado mundial, a balança, pouco a pouco, vai-se inclinando para o lado dos poderosos. Dando mostras de uma espantosa ignorância, os engenheiros da nova economia global ignoram completamente as descobertas daqueles que contribuíram para a construção do seu sucesso. Baixas permanentes dos salários, prolongamento dos horários de trabalho, cortes nas subvenções sociais e até a renúncia completa de qualquer sistema social: eis a «cura de emagrecimento» dos povos antes de os fazer enfrentar a competição mundial. Para a maior parte dos chefes dos grandes grupos e para os políticos liberais da economia, qualquer resistência a este programa não passa de uma tentativa inútil para defender um statu quo insustentável. A mundialização é irresistível, afirmam, e, sob este aspecto, só é comparável à revolução industrial. Quem quer que se lhe oponha acabará por desaparecer, mais cedo ou mais tarde, como os partidários do luddismo, que destruíam as máquinas na Inglaterra do século XIX.

EM FRENTE PARA OS ANOS 30 DO SÉCULO XX

  A maior catástrofe possível seria que os defensores da mundialização tivessem razão ao estabelecerem este paralelo. A entrada na era industrial foi um dos períodos mais terríveis da história europeia. Os antigos senhores feudais associaram-se aos novos capitalistas. Governando pela brutalidade, eliminaram a antiga escala de valores, as regras corporativas dos artesãos e os direitos consuetudinários da população rural, que garantiam uma sobrevivência certa, se bem que pobre. Ao agirem assim fizeram mais do que mergulhar milhões de pessoas no mais absoluto desespero. Provocaram igualmente nas nas suas próprias nações contra-movimentos incontroláveis cujas forças destrutivas levaram num primeiro momento à desestruturação do sistema de comércio livre internacional, após o que desencadearam duas guerras mundiais e a tomada do poder pelos comunistas na parte oriental da Europa.
  Na sua  brilhante obra sobre a «grande transformação», publicada em 1944, Karl Polanyi, especialista de história social, mostrou pormenorizadamente a forma como a aplicação das leis do mercado à mão-de-obra humana - e com ela a profundíssima alteração das antigas estruturas sociais - obrigou os Estados Unidos europeus a mergulharem cada vez mais profundamente num sistema de medidas defensivas irracionais. Segundo Polanyi, a criação de mercados livres « de forma alguma resultou na eliminação dos regulamentos e das intervenções mas, pelo contrário, na sua gigantesca expansão»! Quanto mais a economia de mercado desregulamentada, com as suas crises conjunturais cíclica, desencadeava falências e revoltas dos que tinham fome, mais os governos se viam obrigados a limitar o livre jogo das forças. Num primeiro momento, apenas reprimiam os diversos movimentos de protesto dos operários. Depois, para protegerem os mercados, intervieram contra a concorrência excessiva, sobretudo a dos países estrangeiros, que, por seu lado, reagiram imediatamente recorrendo aos mesmos métodos. Desde o início do século, e especialmente nos anos 20 e 30 do século XX, os governos estiveram mais ocupados a organizarem o proteccionismo do que a defenderam o comércio livre. E quando as guerras comerciais e monetárias degeneraram, a economia mundial, já altamente integrada nessa época, foi precipitada na grande depressão do início dos anos 30.
 É certo que é impossível transpor esquematicamente para a tecnologia do final do século XX o modelo de reacção às forças do mercado descrito por Planyi. Mas nem por isso a sua conclusão é menos certa. Polanyi qualificou de «perigosa utopia» a ideia defendida pelos partidários da economia liberal do século XIX e XX: a de sociedades modeladas por um sistema de mercado internacional que se regularia a si mesmo. Para Polanyi, esta ideia transporta em si mesma o seu próprio fracasso: a política da não-intervenção destrói permanentemente a estabilidade social.
  Todos aqueles que defendem o desmantelamento do Estado-Social e a desregulamentação sem condições defendem ainda hoje essa utopia de um mercado auto-regulado. Os pretensos modernizadores que, desprezando a história, se entregam à lei da oferta e da procura, praticam um «integrismo do mercado», «uma forma de analfabetismo democrático», afirmara já o sociólogo Ulrich Beck. Os direitos fundamentais dos domínios social e económico permitiram que o capitalismo fosse domado. Estes direitos não eram um generoso benefício de que se possa desistir quando a situação se torna difícil. Pelo contrário, eram  a resposta aos conflitos sociais e ao fracasso da democracia na Europa dos anos 20 e por aí fora. Beck afirma: Apenas os indivíduos que têm habitação, um emprego estável e, consequentemente, um futuro material, são cidadãos de se apropriar da democracia e de a tornar viva. A verdade é simples: sem segurança material não há liberdade política. Isto é, não há democracia. E a falta de segurança material é uma ameaça que pesa sobre todos, exercida por regimes totalitários, de hoje e de ontem.
  É precisamente por esta razão que a antinomia entre o mercado e a democracia reencontrou a sua angustiante explosividade nos anos 90 e seguintes. Todos os que olham para as coisas de frente compreenderam-no há já muito tempo. A persistente vaga de xenofobia na população europeia e norte-americana é um sinal infalível que a política integrou. Em quase todos os países da Europa e nos Estados Unidos, leis crescentemente rigorosas sobre a imigração e métodos de vigilância crescentemente severos constituem atentados aos direitos do homem sempre que se trate de refugiados e de migrantes.
  O patamar da exclusão que se irá seguir dirá respeito aos grupos economicamente desfavorecidos da sociedade: beneficiários da assistência social, desempregados, deficientes e jovens sem formação estão já a sentir na pele o facto de os que (ainda) ganham a sua vida estarem a cortar, pouco a pouco, os ramos da solidariedade. Temendo que eles mesmos caiam pelos degraus da escala social, pacíficos cidadãos das classes médias transformam-se em chauvinistas da prosperidade e recusam-se e terem de pagar pelos perdedores da roleta do mercado mundial. Os políticos que representam esta facção da nova direita que varre a Europa, que por exemplo, na Alemanha estão estão reunidos no FDP partido democrático liberal, que até há pouco tempo coligava com a CDU de Angela Merkel e em Portugal estão no actual PSD e também CDS - estão a provocar a inversão do ressentimento popular: neste momento, já não atacam os grandes beneficiários, mas hipotéticos parasitas sociais. São os que clamam que a assistência à terceira idade, na doença,e em caso de perda do emprego deve ser deixada, à vontade individual. Puros e fanáticos defensores do darwinismo. Nos Estados Unidos e na Europa-onde quase metade dos cidadãos nomeadamente das classes populares já nem sequer vai votar-, os novos darwinistas sociais conquistaram mesmo a maioria parlamentar. E empreenderam a divisão das suas nações de acordo com o modelo do tipo brasileiro. 
  As próximas vítimas desta inelutável ideologia serão as mulheres. Na Alemanha, os democratas cristãos que têm a seu cargo os problemas das famílias já decidiram infligir penalizações salariais ás mulheres grávidas com baixa por atestado médico, uma medida que deixa adivinhar o que espera a totalidade das assalariadas. Já hoje as mães que educam sozinhas os seus filhos e que dependem da assistência social travam uma luta quotidiana pela existência.
  Já o Financial Times, desenvolveu um modelo de argumentação que permite justificar a exclusão das mulheres. Segundo este diário, o maior problema da crescente desigualdade é, antes de mais, o dos homens jovens sem qualificação que, na ausência de possibilidades de trabalharem, se deixam arrastar para a violência e a criminalidade - pelo menos é esta a análise categórica de um comentador do sexo masculino.Ora estes homens jovens sofrem sobretudo com a concorrência das mulheres activas, que já ocupam cerca de dois terços dos postos de trabalho não qualificado do país (Inglaterra). Consequentemente, e de acordo com o jornalista, vale mais «limitar o acesso ao mercado de trabalho às mulheres, porque estas não se tornam tão rapidamente criminosas e perigosas». A futura divisa de política económica deveria ser pois: «More Jobs For The Boys».
  As antigas nações prósperas estão a abastecer-se de dinamite; dentro de pouco tempo, os diferentes Estados e os seus governos já não conseguirão desactivar este explosivo. Se não se conseguir mudar de rumo a tempo, assistir-se-é indelevelmente a uma reacção social de defesa semelhante à descrita por Planyi. E é possível prever que também ela terá características proteccionistas e nacionalistas. 
  Há muito tempo que, nos grupos industriais e nos meios económicos os espíritos mais lúcidos compreenderam o perigo. Muitas mentes também lúcidas constatam, com receio, que a «mundialização imprimiu às mutações um ritmo que um número crescente de pessoas que já não consegue assimilar. Como podemos nós canalizar este processo de forma a que os mercados permaneçam abertos e as transformações, apesar de tudo controláveis«? Já o director do gigante das ferramentas a ABB, com mais de mil filiais em cinquenta países, lançou igualmente a seguinte advertência: «Se as empresas não tomarem consciência dos desafios lançados pela pobreza e pelo desemprego, as tensões entre os mais favorecidos e os pobres terão como resultado uma alta considerável da violência e do terrorismo. Os custos humanos da mundialização  estão a atingir um nível que submete toda a estrutura social das democracias a uma prova de resistência sem precedentes, já dizia, Klaus Schwab fundador da WEFD o «ambiente de confusão e de angústia» que está a propagar-se prenuncia, segundo Schwab, uma reacção violenta, súbita e incontrolável que há que levar muito a sério».
  Os líderes políticos e económicos estão perante o desafio de mostrarem como o novo capitalismo mundial pode funcionar de forma a trazer igualmente benefícios para a maioria da população e não apenas aos gestores dos grupos e aos investidores . 
  Mas é precisamente o que os adeptos do mercado não conseguem demonstrar. Era e ainda é possível provar que a divisão internacional do trabalho, que não cessa de se agravar, contribui para fazer aumentar a produtividade mundial. De um ponto de vista económico, a integração do mercado mundial possui um alto grau de eficiência. Mas a repartição da riqueza assim engendrada, a máquina económica global, na ausência de intervenções do Estado, trabalha com a mais total ineficácia, visto que o número dos vencidos ultrapassa largamente o dos vencedores.
  É precisamente por esta razão que a política de integração global, conduzida até agora não tem futuro. O comércio livre mundial não poderá ser mantido sem que o Estado social seja garantido. É certo que as nações da Europa são hoje, incomparavelmente mais pacíficos do que há 50 anos, tanto interna como externamente. Já não há qualquer movimento comunista a tentar inverter a ordem social e em parte nenhuma da Europa há generais e industriais do armamento que sonhem sequer em lançar campanhas de conquistas dos Estados vizinhos. Mas o risco provocado pelo desenvolvimento anárquico dos mercados transnacionais é hoje igual ao que era nessa época. Mais uma vez, paira a ameaça de um crash bolsista mundial - e aqueles que jogam milhões e milhões no mercado informatizado da alta finança mundial sabem-no melhor do que ninguém. E mais uma vez, em todos os países, os partidos democráticos agonizam por não saberem como e onde podem reassumir o comando das operações. Quando os governos exigem incessantemente da sua população mais e mais sacrifícios em favor de um progresso de que só uma minoria beneficia, é natural que esperem que lhes seja mostrada a porta da rua. A cada ponto percentual a mais de desempregados, a cada nova baixa salarial somam-se os riscos de alguns políticos desesperados acabarem por accionar o freio de emergência do proteccionismo e reanimar guerras comerciais ou monetárias que mergulharão todas as nações numa situação económica ruinosa. E, para isso, não é necessário que os nacionalistas ou outros sectários ganhem as eleições. Os políticos adeptos do comércio livre transformar-se-ão em proteccionistas de um dia para o outro, se com isso virem que conseguem um número de sufrágios suficiente.
  Tudo pode suceder, mas não é obrigatório. Apesar de tudo, ainda dispomos hoje de uma vantagem inestimável: a história ensinou-nos que, assumindo o papel de cavaleiro solitário, uma nação não consegue escapar à armadilha do mercado mundial.Temos pois de procurar e optar por outras saídas. Quando se quer evitar o regresso ao nacionalismo económico, há que regulamentar o mercado, regenerando o sistema do Estado social de tal forma que os enormes lucros retirados do aumento da produtividade beneficiem igualmente todos os cidadãos. Por outro lado, não se poderá preservar esse vasto consenso que existe hoje sobre a necessidade de um sistema de mercado aberto ao mundo.
  Mas enganar-nos-íamos se julgássemos que bastaria escolher bons partidos-na Alemanha, em França,em Portugal ou em qualquer outro país europeu - para restabelecer a estabilidade económica e social através de um acto de vontade política. Não haverá nenhum caminho que nos conduza de volta aos anos 70 e 80 do século XX, na época em que os governos nacionais relativamente independentes estabeleciam eles mesmos a justa medida da redistribuição social na sua própria nação e atenuavam as crises cíclicas da expansão planificando os investimentos estatais. A integração económica foi demasiado longe para que tal seja possível. Na corrida mundial às partes do bolo do mercado mundial, as nações vão percorrendo uma auto-estrada de quatro vias (até ao grande cheque em cadeia) onde nenhum país consegue voltar atrás unicamente por sua vontade, a menos que que queira correr o risco de desaparecer.
  De qualquer forma, já não é desejável voltar atrás. A integração económica mundial, no final de contas, contém em si enormes possibilidades. A fantástica alta de produtividade poderia igualmente ser utilizada para fazer sair da pobreza uma parte cada vez mais importante da humanidade e para financiar nos antigos países da prosperidade a reconversão ecológica da economia do desperdício. Neste caso, porém, haveria que colocar uma trajectória social, tornando-a compatível com a democracia, a competição nos mercados mundiais, que até agora se tem revelado suicida. Haveria que transformar a globalização da injustiça num desenvolvimento que permitisse o equilíbrio global.
  Existem projectos e estratégias para bloquear este avanço em direcção à sociedade dos dois décimos. A sociedade dos 20/80, em que 20% da população são os incluídos e 80% os excluídos. O primeiro passo importante seria limitar o poder político de que dispõem os actores dos mercados financeiros. Criando-se um imposto sobre o volume financeiro das vendas de divisas e da concessão de créditos no estrangeiro, os bancos centrais e os governos doa países do G7 já não seriam obrigados a submeter-se incondicionalmente às exigências excessivas dos negociadores. Em vez de travar os investimentos praticando taxas de juro demasiado elevadas, em vez de combater uma inflação que não constitui ameaça, poderiam começar a trabalhar em conjunto, a encorajar a liberdade empresarial, permitindo que os bancos centrais concedessem empréstimos a preços baixos, o que favoreceria tanto o crescimento como o emprego.
  Tais medidas andariam inevitavelmente a par de uma reforma fiscal ecológica que tributaria severamente o consumo dos recursos naturais e valorizaria a mão-de-obra graças à diminuição dos descontos de carácter social. É a única forma de impedir o prosseguimento da pilhagem dos fundamentos ecológicos de todas as actividades económicas e de garantir o máximo de oportunidades às gerações futuras.
  Existe, por outro lado, um consenso alargado quanto à necessidade de melhorar o alcance e a eficiência dos sistemas educativos. Se é verdade que a sociedade industrial está a dar lugar à sociedade da informação, então é totalmente escandaloso constatar que tanto na Europa como noutros continentes existem ainda muitos jovens que não receberem uma qualquer formação e que as universidades estão a entrar em descalabro porque o boicote fiscal praticado pelos grandes grupos e pelos ricos empobrece os orçamentos dos Estados.
  Para se poder formar pessoas, bem como para se criar um maior número de postos de trabalho com os fundos estatais - investindo num sistema de circulação não poluente, por exemplo -, há que encontrar novas fontes de rendimento para os orçamentos públicos. Nem que fosse unicamente por esta razão, há que tributar os lucros financeiros dos mais abastados. Da mesma forma, elevadas taxas de IVA sobre os produtos de luxo poderiam assegurar uma maior justiça social.
  Quando os governos  já não podem responder a todas as questões existenciais referentes ao futuro senão evocando a inexorável condicionante da economia transnacional, toda a política se transforma numa comédia de impotência e o Estado democrático perde a sua legitimidade.
  A mundialização transforma-se assim numa armadilha para a democracia.

  Isto só pode acabar mal!


  Jorge Neves